Por Martamaria Ribeiro, Karla Rodrigues, Leonardo Bonfim e Islania Brandão Barbosa
A crescente disponibilidade de terapias antineoplásicas orais está transformando o tratamento do câncer. Essas terapias representam uma mudança significativa em relação aos tratamentos intravenosos tradicionais, oferecendo maior comodidade e qualidade de vida aos pacientes. No entanto, a ampla utilização dessas terapias traz desafios importantes, especialmente em relação ao uso racional dos medicamentos, definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como a situação em que os pacientes recebem medicamentos adequados às suas necessidades clínicas, nas doses apropriadas, pelo tempo necessário, ao menor custo possível¹.
O Brasil enfrenta uma realidade complexa quanto ao acesso a novas tecnologias de tratamento do câncer, particularmente no que se refere às terapias orais. Pacientes tanto do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto de planos de saúde suplementar frequentemente enfrentam barreiras no acesso a medicamentos inovadores. Essa dificuldade se deve à morosidade na incorporação de novas tecnologias, à ausência de cobertura adequada para testes genômicos e ao alto custo dos medicamentos, o que leva muitos pacientes a recorrerem à judicialização para obter acesso2,3.
O tratamento domiciliar com medicamentos orais oferece vantagens ao paciente, como maior autonomia e conforto. Entretanto, exige maior responsabilidade por parte do paciente, que deve gerenciar corretamente a administração das doses, bem como lidar com possíveis efeitos adversos. Nesse contexto, o papel do farmacêutico se torna fundamental, uma vez que ele é o profissional que oferece suporte ao paciente na gestão do tratamento, monitoramento dos resultados e intervenções necessárias para evitar complicações 4,5.
Oncologia de Precisão e a Expansão das Terapias Orais
Nos últimos anos, a oncologia de precisão tem promovido uma revolução no tratamento do câncer. Essa abordagem utiliza informações detalhadas sobre as alterações moleculares e genéticas dos tumores para selecionar terapias personalizadas, capazes de atingir diretamente as células cancerígenas, com menores danos às células normais. As terapias-alvo, que incluem inibidores de tirosina quinase (TKIs), são um exemplo dessa inovação. Essas drogas inibem receptores celulares responsáveis pelo crescimento tumoral, como o receptor do fator de crescimento epidérmico (EGFR) e o receptor do fator de crescimento derivado de plaquetas (PDGFR)6,7.
Os inibidores de tirosina quinase representam um avanço significativo, pois muitas dessas moléculas estão disponíveis em formulação oral, proporcionando aos pacientes um tratamento eficaz que pode ser administrado em casa. Entretanto, a evolução da medicina de precisão no Brasil enfrenta obstáculos, principalmente relacionados ao acesso. A realização de testes genômicos para identificar as alterações moleculares nos tumores, essenciais para a escolha dessas terapias, possui um alto custo que, em grande parte, não é coberto pelos planos de saúde nem pelo SUS8. Além disso, o processo de incorporação de novas tecnologias no SUS é lento, pois envolve longas avaliações farmacoeconômicas e de custo-benefício9.
A figura abaixo demonstra a evolução do número de biomarcadores preditivos de resposta a terapias-alvo, evidenciando o impacto da oncologia de precisão no tratamento de diferentes tipos de câncer.
Figura 1. Evolução histórica do número de biomarcadores (genes) preditivos de resposta a terapias-alvo (fármacos) e aprovados para diferentes neoplasias (tumores).
Fonte: FERREIRA, et al. 20228.
Conforme a oncologia de precisão avança, o número de terapias orais disponíveis também aumenta, destacando a importância de políticas públicas que ampliem o acesso a essas inovações.
O Papel do Farmacêutico no Gerenciamento das Terapias Orais
Com o crescimento no número de prescrições de terapias orais, aumenta também a responsabilidade do farmacêutico no acompanhamento do paciente. O sucesso de uma terapia oral não depende apenas da prescrição correta, mas também do monitoramento contínuo do uso, da identificação precoce de efeitos adversos e da promoção da adesão ao tratamento. Um dos principais desafios enfrentados pelos pacientes em tratamento com terapias orais é a baixa adesão. Estudos indicam que a falta de adesão pode levar à redução significativa na eficácia do tratamento e à piora dos resultados clínicos. A adesão inadequada pode ocorrer por vários motivos, como esquecimento, efeitos colaterais não tratados e falta de compreensão da importância do tratamento10.
Nesse sentido, o papel do farmacêutico é crucial. Ele atua na orientação dos pacientes, esclarecendo dúvidas sobre a forma correta de administração dos medicamentos e alertando sobre a importância de seguir rigorosamente o plano terapêutico. Além disso, o farmacêutico é responsável por identificar problemas de adesão e implementar estratégias que ajudem a minimizar esses problemas, como o uso de ferramentas tecnológicas, lembretes e suporte educacional4.
Outro aspecto importante do papel do farmacêutico é o monitoramento de toxicidades. As terapias orais frequentemente estão associadas a efeitos colaterais significativos, como náuseas, fadiga, diarreia e dor. O farmacêutico, em colaboração com a equipe médica, pode ajustar as doses dos medicamentos e oferecer orientações sobre como gerenciar esses sintomas. Isso inclui intervenções como mudanças na dieta, uso de medicamentos de suporte e, quando necessário, modificação do regime terapêutico5.
Inovações Tecnológicas e o Monitoramento das Terapias Orais
Com os avanços tecnológicos, o monitoramento das terapias orais em oncologia tem sido facilitado por ferramentas digitais. Aplicativos móveis, como Medisafe e MyTherapy, permitem que os pacientes registrem a administração dos medicamentos, recebam lembretes automáticos e acompanhem os efeitos colaterais. Esses aplicativos têm mostrado aumentar a adesão ao tratamento, já que oferecem um acompanhamento contínuo, mesmo fora do ambiente hospitalar 11.
Dispositivos vestíveis (wearables), como smartwatches, monitoram em tempo real parâmetros de saúde do paciente, como frequência cardíaca e níveis de atividade física. Esses dados podem ser integrados a sistemas de saúde, permitindo que os profissionais de saúde façam ajustes no tratamento com base em informações precisas e atualizadas sobre o estado do paciente. Além disso, o uso de Big Data e Inteligência Artificial (IA) tem permitido análises detalhadas sobre a resposta ao tratamento e previsões sobre possíveis complicações, otimizando as decisões clínicas12.
A telemedicina, por sua vez, tem se tornado uma ferramenta essencial para o monitoramento remoto dos pacientes. Consultas virtuais permitem que os profissionais de saúde acompanhem o paciente em tempo real, avaliem toxicidades e ofereçam suporte contínuo, reduzindo a necessidade de visitas presenciais e aumentando a satisfação do paciente13.
Considerações Finais
O cenário das terapias orais em oncologia no Brasil ainda enfrenta muitos desafios, mas também oferece grandes oportunidades de inovação e crescimento. O farmacêutico, como parte integrante da equipe de saúde, desempenha um papel essencial na garantia de que essas terapias sejam administradas de forma segura e eficaz, promovendo uma melhor qualidade de vida para os pacientes.
A capacitação contínua dos farmacêuticos é vital para que eles possam acompanhar os avanços na oncologia de precisão e nas tecnologias de monitoramento, oferecendo um cuidado personalizado e centrado nas necessidades dos pacientes. Ao mesmo tempo, é crucial que políticas públicas sejam desenvolvidas para ampliar o acesso a essas terapias e garantir que todos os pacientes, independentemente de sua situação econômica, possam se beneficiar das inovações no tratamento do câncer.
Referências
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