Por Dra. Karina Rodrigues Romanini Subi e Dra. Polianna Mara Rodrigues de Souza
Introdução
Priorizar alívio da dor em pacientes oncológicos é essencial. Estima-se que, no momento do diagnóstico, cerca de um terço dos pacientes já experimentam algum tipo de dor. Esse percentual ultrapassa 50% em algum estágio da doença e pode chegar a quase 70% nos casos em que a doença está avançada1.
A dor não controlada gera estresse fisiológico, o que influencia negativamente processos de reabilitação e recuperação, além de poder impactar diretamente os resultados do tratamento oncológico2. Os pacientes que sofrem de dor mal controlada tendem a apresentar redução na capacidade funcional, maior dependência, alterações de humor, isolamento social, distúrbios no sono, perda de apetite, dificuldades de locomoção e deambulação, além de uma percepção negativa da própria saúde. Isso se traduz em maior demanda por cuidados de saúde e, consequentemente, em aumento dos custos e diminuição da qualidade de vida1,2.
Já sabemos que o controle eficaz da dor e de outros sintomas contribui para a melhora da sobrevida global, aumenta a tolerância ao tratamento oncológico e aprimora a qualidade de vida dos pacientes3.
No entanto, muitas vezes, menos da metade dos pacientes com dor informa esse sintoma ao seu oncologista. Essa resistência pode ser motivada pelo receio de que a queixa de dor interfira negativamente no tratamento, ou pela crença de que sentir dor faz parte do processo da doença e que é algo inevitável2,4.
Infelizmente, cerca de 25% dos pacientes com câncer falecem com dor não controlada. Essa realidade evidencia o desafio de manejar a dor nesses pacientes, exigindo uma abordagem que inclua não só a aplicação de escalas adequadas para sua avaliação, mas também o entendimento da fisiopatologia da dor para o diagnóstico correto de sua origem, além do conhecimento dos princípios de farmacologia e das técnicas intervencionistas. Ademais, é fundamental considerar o caráter multifatorial da dor, o que requer a compreensão dos aspectos mais subjetivos, como a capacidade de acolhimento, a criação de vínculos e a avaliação biopsicossocial do paciente em diferentes fases do tratamento4.
Essa abordagem caracteriza a concepção de Dor Total, que engloba não apenas os sintomas físicos, mas também os fatores psicológicos, sociais e espirituais que geram um impacto multidimensional no sofrimento. Tal sofrimento não afeta somente o paciente, mas também seus familiares e cuidadores.
Manejo da Dor Oncológica - Abordagem Multimodal
O tratamento da dor oncológica deve ser multi e interdisciplinar, individualizado, com foco na avaliação contínua e ajuste das terapias conforme a resposta do paciente3,4.
A terapia farmacológica deve ser multimodal, utilizando diferentes classes de medicamentos para atuar em mecanismos distintos da dor, minimizando os efeitos colaterais e otimizando o alívio3,4.
A escada analgésica da OMS, mundialmente difundida, atualmente se constitui em medida educacional útil, porém não consiste em protocolo rigoroso para o tratamento da dor oncológica3. Ela norteia o manejo medicamentoso, porém outros estudos indicam uma tendência à supressão do segundo degrau, além da descrição de sugestões para a inclusão de um quarto degrau para locar as opções de intervenção. Essas alterações não têm por intuito negar o uso da escada original, que já se mostrou efetiva ao longo dos anos, mas tais adaptações se mostram necessárias para assegurar seu uso continuado com as inovações mais recentes em farmacologia e intervencionismo, sem perder sua simplicidade original, facilitando a disseminação do conhecimento em dor oncológica.
É recomendável o uso de opioides fortes como primeira linha de analgésicos para o tratamento da dor oncológica, sobretudo quando moderada a intensa4,5. Os opioides constituem o principal pilar do tratamento da dor oncológica e podem ser utilizados em todos os tipos de dor. Tal recomendação fica ainda mais embasada ao analisarmos sobre o uso controverso de codeína, devido à variabilidade na resposta individual ao fármaco. A metabolização da codeína pode ser afetada por fatores genéticos, levando alguns indivíduos a metabolizá-la rápido demais, o que pode resultar em toxicidade, enquanto outros podem não obter alívio da dor suficiente. Esses riscos tornam a morfina uma opção mais segura e confiável.
Adjuvantes
As medicações adjuvantes têm efeitos analgésicos indiretos e devem ser utilizadas para aprimorar a eficácia dos opioides, reduzir seu consumo, prevenir e tratar sintomas que possam agravar a dor, além de auxiliar no manejo da dor neuropática ou nociplástica3,4. Exemplos de medicamentos adjuvantes incluem anticonvulsivantes, antidepressivos tricíclicos e duais, corticosteroides, bisfosfonatos, neurolépticos e anestésicos locais. Embora os estudos sobre adjuvantes sejam predominantes na dor neuropática não oncológica, suas aplicações no contexto oncológico também têm mostrado resultados promissores.
Terapias Não Farmacológicas
A inclusão de fisioterapia, psicoterapia e práticas integrativas, como acupuntura e mindfulness, tem se mostrado eficaz no manejo da dor crônica e na melhora do bem-estar global dos pacientes4,5.
Terapias Intervencionistas
O tratamento intervencionista envolve a utilização de técnicas minimamente invasivas para o alívio da dor, podendo ser aplicado isoladamente ou em conjunto com a terapia medicamentosa. Essas intervenções podem resultar na eliminação ou na significativa redução do consumo de analgésicos, com a consequente diminuição dos efeitos colaterais associados a esses medicamentos4,5.
Infelizmente, essas abordagens ainda são frequentemente vistas como medidas de exceção, um equívoco que pode levar ao prolongamento do sofrimento do paciente e à perda do tempo ideal para a sua realização. Muitas vezes, os procedimentos intervencionistas são solicitados em estágios avançados da doença, quando o paciente já se encontra em situação clínica crítica ou em fase terminal, limitando a eficácia das intervenções e resultando em um benefício de curto prazo.
É crucial que a ausência de contraindicações gerais — como infecção, coagulopatia e recusa do paciente — seja sempre avaliada antes da realização de qualquer procedimento. Além disso, uma abordagem multidisciplinar e a consideração das preferências do paciente são fundamentais para garantir que as intervenções sejam realizadas no momento adequado, otimizando os resultados e melhorando a qualidade de vida do paciente.
A adoção mais ampla dessas técnicas pode não apenas melhorar o controle da dor, mas também reduzir a necessidade de tratamentos medicamentosos mais agressivos, promovendo um cuidado mais equilibrado e centrado no paciente.
Desafios e Barreira no Tratamento da Dor Oncológica
Apesar dos avanços no manejo da dor, muitos pacientes oncológicos continuam a sofrer devido a uma série de barreiras ao tratamento adequado, incluindo3,4:
- Estigma em relação ao uso de opioides: O medo de dependência e a relutância em prescrever opioides em doses eficazes são obstáculos comuns no manejo da dor.
- Acesso limitado a especialistas: Em muitas regiões, o acesso a cuidados especializados em dor ainda é restrito, limitando as opções de tratamento para pacientes com dor complexa.
- Educação inadequada: Pacientes e profissionais de saúde muitas vezes carecem de conhecimento sobre o manejo adequado da dor, resultando em sub tratamento.
Conclusão
O manejo adequado da dor oncológica, independentemente da sua intensidade, é crucial para a qualidade de vida dos pacientes com câncer. A utilização de uma abordagem multimodal, que combine opioides, analgésicos adjuvantes e terapias intervencionistas, pode proporcionar um alívio eficaz da dor e melhorar o bem-estar físico e emocional dos pacientes. Contudo, é necessário um esforço contínuo para superar as barreiras ao tratamento e garantir que todos os pacientes recebam cuidados adequados e individualizados.
Referências
- Snijders RAH, Brom L, Theunissen M, van den Beuken-van Everdingen MHJ. Update on Prevalence of Pain in Patients with Cancer 2022: A Systematic Literature Review and Meta-Analysis. Cancers. 2023 Jan 18;15(3):591.
- Min EK, Chong JU, Hwang HK, Pae SJ, Kang CM, Lee WJ. Negative oncologic impact of poor postoperative pain control in left-sided pancreatic cancer. World J Gastroenterol. 2017;23(4):676-686. doi:10.3748/wjg.v23.i4.676
3. Portenoy RK, Mehta Z, Ahmed E. Cancer pain management: General principles and risk management for patients receiving opioids. UpToDate. Retrieved Oct 10, 2024. Available: https://www.uptodate.com/contents/cancer-pain-management-general-principles-and-risk-management-for-patients-receiving-opioids
- WHO Guidelines for the Pharmacological and Radiotherapeutic Management of Cancer Pain in Adults and Adolescents. Geneva: World Health Organization; 2018.
- National Comprehensive Cancer Network. Adult Cancer Pain (Version 2.2024)- https://www.nccn.org/professionals/physician_gls/pdf/pain.pdf Accessed October 03, 2024.